RIO – Diplomata que participou ativamente da renegociação da dívida externa num momento em que as reservas brasileiras mal chegavam a US$ 4 bilhões; executivo que dirigiu por dois anos a Vale do Rio Doce; laureado tradutor de J.D. Salinger e de Vladimir Nabokov para o português, o embaixador Jório Dauster não é um catastrofista.
Trabalha com a análise de possibilidades lógicas exercitada em 36 anos de carreira e, a partir desta bagagem, diz, sem hesitações, que o pior da crise mundial ainda não chegou.
– É grande o risco de que estejamos apenas entrando no túnel, e longe de ver luz na extremidade oposta – vaticina Dauster.
O embaixador teme, ainda, que estejam crescendo os ingredientes de uma receita para um desastre em escala mundial, com o estouro de fundos de hedge que ainda conseguem adiar o desenlace com venda de ativos desvalorizados.
Sobretudo, receia que a incapacidade de pagamento em moeda forte leve o Leste Europeu a uma situação de colapso econômico, seguido de convulsões sociais.
Tudo podendo levar ao buraco bancos de outros países europeus, numa situação assemelhada ao bíblico choro e ranger de dentes.
Dauster situa as origens do cataclisma econômico no naufrágio do sonho de igualdade americano, sustentado pela China e detonado na era Bush, nos primórdios de uma recessão que ainda pode transformar-se em depressão. Como nota positiva, prevê que o Brasil será um dos poucos países que poderão atravessar esses tempos difíceis sem os riscos da desorganização econômica e social.
As origens e duração da crise
Todo mundo fica buscando as origens da crise em questões técnicas, mas sem olhar a coisa mais profunda. O que havia nos EUA, que tornava “necessário” um movimento desse tipo? Nos últimos 20 ou 30 anos, houve uma concentração de renda crescente nos EUA. Na verdade, este sonho americano da igualdade está naufragando há bastante tempo. Este processo foi acelerado durante os oito anos de Bush, devido às vantagens de impostos que ele deu para os ricos, e ao próprio sistema financeiro, que, da forma que passou a operar, dando prêmios para desempenho, fez com que este processo de concentração de renda se acelerasse de forma brutal.
Para que isto não fosse tão grave a ponto de gerar uma reação popular, houve aqueles facilitários ensandecidos para a classe média e baixa comprar casa, além dos estímulos para que todo o mundo se endividasse com cartão.
Quanto ao tempo para se voltar ao que havia antes e mais complexo. Em termos de bolsa, a experiência é que às vezes leva cinco ou seis anos, quando se tem uma recessão profunda, para retornar aos níveis anteriores. Mas esta é uma visão limitada da realidade. O que aconteceu agora é que o mundo encolheu. O mundo estava doentiamente inchado e com uma dimensão que não vai retomar por muito tempo.
A melhor forma forma de exemplificar isto é com a situação de um atleta que bateu o recorde mundial porque usou anabolizantes. Não é como um resfriado, que depois de uma convalescência de um mês, volta a treinar e repete aquela performance. Não é a mesma coisa, ele nunca vai conseguir isto, porque o resultado foi obtido de forma artificial.
Então, é uma boa imagem dizer que a economia mundial foi anabolizada. Houve uma inchação durante muitos anos, e não vai se retornar ao que era em 4,5, 6 meses ou um ano.
Ilusão de riqueza
Na essência, essa coisa vaga que é o establishment americano – os interesses do grupo que cercava Bush, mas também de outros – tratou de manter a classe média americana e a classe trabalhadora, que vinha perdendo a substância, narcotizada pela ilusão que estava enriquecendo. Além disso, havia necessidade de obter recursos crescentes para a guerra do Iraque. Esses são os dois movimentos históricos profundos nos EUA que, a meu juízo, acabaram confluindo para aquela postura do “vamos que vamos”, deixar tudo correr solto porque favorecia os interesses dominantes.
O resto são detalhes de como a banda tocava. as pessoas ficam muito concentradas nos detalhes, explicando exaustivamente este negócio do subprime, etc. Era simplesmente uma forma de pegar créditos imobiliários fajutos em que até imigrante ilegais eram tidos como bons tomadores. Então, os alquimistas do sistema financeiro descobriram a fórmula de transformar porcaria em ouro. Pegaram pedacinhos dessas dívidas para lá de duvidosas, juntavam com outras melhores e vendiam um papel mistureba. Que, por sua vez, ia sendo repassado para outras mãos, que o alavancava sob a forma de complexos derivativos. O resultado dessas operações mágicas é que, hoje, nem os bancos podem avaliar o valor dos papéis que detêm ou, no linguajar da moda, seu grau de toxicidade (leia-se, percentagem de dívidas irrecuperáveis).
Havia interesse da classe dominante America em fazer esta festa. E ganharam fábulas de dinheiro durante dez anos. Financiaram a guerra do Iraque. Os donos do poder estavam gostando. Agora a quebra é tão grande que vem sempre uma onda moralista e dentro disso vai haver uma arrumação. Talvez até o FMI se reinventar para fazer um novo papel. Na verdade, ele estava sem enredo, cortaram-lhe as falas. O Banco Mundial tem menos dinheiro que o BNDES. Já tinha virado uma burocracia incrustrada em Washington, com bons salários, mas que não tinha nenhuma razão de ser no mundo.
Até os países em desenvolvimento estavam mostrando desempenho fiscal e monetário melhor do que o centro! E eles não iriam falar para os Estados Unidos, “olha aí, vocês vão quebrar”.
Estranha simbiose
O endividamento crescente dos Estados Unidos não poderia funcionar. Precisava haver alguém no mundo que quisesse comprar essa dívida crescente. E aconteceu que havia a China (e quando se fala em China vêm também Taiwan, Hong Kong, Coreia, com o mesmo modelo exportador da China), que se prontificou a ser o credor em última instância dos EUA, acumulando quase US$ 2 trilhões de reservas em papéis do Tesouro americano. O que ela fez foi bancar este período alucinado de consumerismo americano e de gastos bélicos, porque lhe interessava gerar emprego para centenas de milhões de cidadãos que migravam do campo para as cidades.
Nasceu assim a estranha e inesperada relação simbiótica entre EUA e China. Foi uma nova versão da conhecida fábula de La Fontaine: aqui a cigarra americana pôde bailar por muitos anos financiada pela formiguinha chinesa, desde que continuasse a comprar no Império do Meio boa parte das joias e adereços com que se embelezava. Um dia isso tinha de acabar.
Dólares a granel
A pergunta que se coloca é quem vai bancar os Estados Unidos para que saiam do buraco que eles próprios cavaram? Por enquanto, estão rodando furiosamente a maior máquina de impressão do planeta porque, com a taxa de juros perto de zero, a política monetária já deu o que tinha de dar. Em termos de política fiscal, a redução de impostos é bem-vinda, mas, nas condições atuais, o consumidor está tão apavorado e endividado que esta parte do pacote do Obama vai ter pouco impacto no consumo. As pessoas vão tratar de entesourar esses recursos ou pagar dívidas de um cartão que está queimando em suas mãos.
Diante disso, todo mundo concorda que só resta jogar o máximo de dinheiro no mercado. Mas os EUA podem fazer isto porque rodam aquela impressora gigantesca e surge dólar em papel-moeda ou, o que é mais importante, em títulos do Tesouro. E aí não é mais só a China, mas todo o mundo, apavorado, com aversão ao risco, porque sente os efeitos desse tsunami, ainda acha que o porto seguro é um ativo garantido pelo governo americano. Mas isto não dura indefinidamente. Tanto que o próprio Obama tratou de adiantar seu orçamento lá para diante, a fim de mostrar que reconhece como será difícil impedir que o dólar se transforme em confete quando os Estados Unidos saírem desse buraco daqui a dois ou três anos.
Risco futuro
Com essa massa de dinheiro que está sendo despejada no mercado para evitar o risco da deflação, a ameaça futura é uma hiperinflação. Nos próximos meses, o principal problema é saber se ainda haverá tomadores para outros trilhões de dólares. Por enquanto há, porque os bancos em perigo, ao receberem recursos do governo americano, não estão voltando a emprestar mas, sim, comprando papéis do Tesouro. A China até o momento compra esses papéis, talvez até para evitar que suas imensas reservas virem pó, mas dificilmente continuará a fazê-lo diante da queda continuada de suas receitas de exportação.
EUA, a saída
A solução para a crise só virá dos Estados Unidos, pois ali está o epicentro do terremoto. Não há país ou região que, no futuro previsível, possa substituí-los no papel de locomotiva econômica mundial. Mas, a meu juízo, estamos vivendo ainda os primórdios de uma recessão que ainda pode se transformar em depressão.
Para início de conversa, prossegue a hemorragia no setor imobiliário, causa imediata da crise. O valor das casas continua a cair, os imóveis continuam a ser retomados pelos bancos. Mesmo este pacote imobiliário do Obama – de US$ 200 bilhões – só se aplica aos devedores que têm capacidade de honrar seus compromissos caso se reduzam os pagamentos mensais. Mas não salva os milhões de cidadãos que já suspenderam seus pagamentos, e cuja dívida é maior do que o valor presente do imóvel, os que ficaram desempregados ontem ou ficarão amanhã. Enquanto não se chegar ao fundo do poço imobiliário residencial, todos os papéis vinculados a hipotecas que se acumulam nos cofres dos bancos continuam a perder valor, aumentando o nível de toxicidade de todo o sistema financeiro mundial.
Não bastasse isso, o setor imobiliário comercial – edifícios de escritórios, shoppings, fábricas, depósitos – também caminha para o brejo devido ao aumento dos custos financeiros e à retração da economia real. É impressionante o que há de obras paradas ou parando em Nova York ou em Londres, cujo setor financeiro ao final dessa crise será uma fração do que era antes. E não é só a City que sofrerá essa redução estrutural. Muita coisa no mundo será menor por muitos e muitos anos porque dezenas de trilhões de dólares evaporaram. Não é que tenham ficado encostados em algum canto para voltar daqui a pouco. Não voltarão tão cedo, porque não guardavam correspondência com os fundamentos da economia mundial.
Problema à vista
Há outros problemas enormes que podem estourar a qualquer momento. Por exemplo: os fundos de hedge, muitos dos quais simplesmente deixaram de cumprir as ordens de retirada, mas que não vão poder continuar fazendo isso. Alguns estão tentando se salvar vendendo ativos bons, embora seu valor de mercado caia por força de suas próprias vendas, num círculo claramente vicioso. Outro imenso problema potencial naquele país é a inadimplência crescente nos pagamentos dos cartões de crédito, que tende a se acelerar à medida em que os índices de desemprego caminham para superar a cifra antes inimaginável de 10%.
Por outro lado, grandes bancos americanos se encontram em situação insustentável, mas há uma forte resistência ideológica à estatização, caminho seguido abertamente pelo Reino Unido e outros países confrontados com o desmantelamento de seus setores financeiros. No entanto, a menos que a solução alternativa do “banco bom/banco mau” seja aplicada com urgência e muita precisão, creio que não há outra saída para os insolventes senão o controle pelo governo. E a razão é óbvia: o problema fundamental de falta de confiança persistirá enquanto essas megainstituições estiverem carregando papéis que ninguém deseja comprar porque tudo que se sabe de seu valor é que ele continua a cair semana após semana.
Túnel sem luz
Por tudo isso, lamento dizer, é grande o risco de que estejamos apenas entrando no túnel, muito longe de ver alguma luz na extremidade oposta. Além das centenas de trilhões de dólares que já foram despejados no sistema financeiro exclusivamente para impedir sua implosão, muitas das medidas tomadas até agora por Obama, embora válidas, tomarão bastante tempo para gerar efeitos significativos em termos de emprego e de renda. A redução de impostos em favor da classe média dificilmente servirá para ressuscitar os antigos hábitos de consumo, pois seus beneficiários tenderão a pagar dívidas cada vez mais custosas ou a economizar. Como não adianta pintar as unhas de um paciente que está na UTI perdendo sangue, o que se espera é uma solução definitiva para o sistema bancário, sem a qual o fluido vital da economia não voltará a circular e o paciente cairá num coma profundo.
Ameaça européia
A situação é gravíssima no Leste Europeu, onde a incapacidade de pagar dívidas contraídas em moeda forte trará para o buraco os bancos da Áustria e de outros países europeus. Caso isso ocorra, se complicará em muito a situação de todo o continente europeu. Nem na União Europeia existe suficiente vontade política para tomar as decisões drásticas que a hora requer – o que me parece uma boa receita para o desastre. O colapso econômico de um país como a Ucrânia, seguido de prováveis convulsões sociais, pode gerar atritos políticos com a Rússia, ela também às voltas com dificuldades devido à queda do preço do petróleo e ao derretimento de suas reservas cambiais.
Como fica o Brasil
O Brasil é um dos poucos países que poderão atravessar esses tempos sem os riscos da desorganização econômica e social. Quer o mundo viva apenas uma recessão de alguns meses, como seria desejável, ou uma depressão de alguns anos, como infelizmente pode acontecer, o Brasil ocupará ao final posição mais importante no concerto das nações.
Representação dos emergentes
A curto prazo, não creio que haverá mudanças substanciais no peso decisório dos países emergentes nos organismos que representam o status quo pós-Segunda Guerra Mundial, em especial o Banco Mundial e o FMI, pois são imensas as resistências no Congresso norte-americano e em diversos países europeus que custam a aceitar sua nova condição de meros figurantes. Caso se crie alguma nova instituição, o que não me parece provável, aí sim os emergentes teriam de exigir um poder de voto proporcional a seu potencial econômico, mas, na verdade, esse rearranjo de forças em escala mundial só será institucionalizado depois de superada a atual crise.
Fonte: Jornal do Brasil
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